segunda-feira, 15 de abril de 2013

A FACE AMARELA ( conto para o 7° ano )

A face amarela OS LEITORES bem sabem que eu, Dr. Watson, relatei dezenas de casos solucionados pela inteligência e lógica de meu amigo Sherlock Holmes. Sabem também que foram poucas as vezes que registrei insucessos em sua brilhante carreira. Confesso que não escondo as derrotas. A verdade é que as vitórias de Sherlock foram constantes, sempre que ele se dedicou a esclarecer mistérios ou crimes que pareciam impossíveis de resolver pela maior parte da humanidade; mas também amargou, nesses tantos anos em que convivo com ele, alguns equívocos. É o que ocorreu nesse caso que denominei Aface amarela. Tudo começou quando surgiu um homem em nosso escritório da Rua Baker, 22 I B. Entrou sem bater à porta. Estava bem vestido e tinha um chapéu à mão. Parecia bas¬tante nervoso. Eu lhe daria uns trinta e poucos anos. -Peço-lhesdesculpas,cavalheiros-disse ele, um tanto embaraçado. -Devia ter batido. Mas o fato é que estou sem dormir direito há algumas noites e... Passou a mão pela testa e dirigiu-se ao sofá. Diria que mais caiu sobre ele do que sentou. -Algumas noites sem dormir cansam mais os nervos do que o trabalho... -disse Holmes, com um jeito de intimida¬de que sempre coloca à vontade as pessoas que o procuram. -Em que posso ajudá-lo? -Quero o seu conselho, senhor. Não sei o que fazer. Toda a minha vida parece que está afundando. -a senhor quer me contratar como detetive? -Não é bem isso. Quero a sua opinião porque sei que' O senhor é um homem especial, que desvenda mistérios e conhece a alma humana. Preciso de um conselho. Até para saber o que devo fazer depois. O homem falava pausadamente, mas o tom de sua voz mostrava que seu assunto era doloroso. Continuou depois, com o rosto ruborizado: -É tudo tão estranho, tão delicado. É horrível discutir O comportamento da esposa com dois homens que nunca se viu antes! Mas estou no fim das minhas forças e preciso de conselho. -Meu caro Sr. Grant Munro... -começou Sherlock Holmes. Nosso visitante saltou do sofá. -A quê!-gritou ele.-a senhorsabeomeunome? -Se o senhor pretende permanecer incógnito –disseHolmes, sorrindo -, sugiro que deixe de escrever o nomeno forro do chapéu. E também que não vire o interior dochapéu para aqueles com quem está falando... Holmes sentou-se no outro sofá e pegou o cachimbo.Acendeu-o calmamente, enquanto continuava: -Gostaria também de lhe dizer que eu e meu amigo jáouvimos muitos segredos nesta sala, e a sorte nos sorriu, demodo a trazer paz para muitas almas angustiadas. Esperoque possamos fazer o mesmo pelo senhor. O assim descoberto Sr. Munro passou a mão pela testa diversas vezes,como se os pensamentos lhe fervessem dentro dacabeça.Imagineiqueele seria um homem reservado e orgulhoso,do tipo queprefereescondersuasferidasaexpô-las.Mas,num gesto súbito, esmurrou a mão que segurava o chapéu,como quem nada mais tem a perder, e começou a falar: -Os fatos são estes, Sr. Holmes. Sou casado há três anos. Durante esse tempo eu e minha esposa vivemos bem, ama¬mos um ao outro e nunca tivemos sequer uma discussão. Agora, desde a Última segunda-feira, ergueu-se uma barreira entre nós. Descobri que há alguma coisa na sua vida e nos seus pensamentos que eu não conheço, como se Effie fosse uma mulher estranha, uma desconhecida com quem eu cru¬zasse pelas ruas. Quero saber por quê. Antes de continuar, Sr. Holmes, quero deixar bem claro umacoisa:Effiemeama.Não tenhodúvidasaesserespeito. Eu sinto isso. Mas agora surgiu esse segredo e jamais serei o mesmo com ela, enquanto não esclarecer tudo. -Por favor, Sr. Munro, procure me apresentar os fatos . -disse Sherlock, um tanto impaciente. Nosso cliente respirou profundamente e procurou ser mais objetivo: -Eu lhe direi o que conheço da história de Effie. Era viú¬va, quando a encontrei pela primeira vez, embora muito jo¬vem.Tinha apenas 22 anos. Chamava-se então Sra. Hebron. Foi para a América quando criança, morou em Atlanta I, onde se casou com Hebron, um advogado de grande clien¬tela. Tiveram uma filha. Mas aconteceu uma terrível epidemia de febre amarela e tanto o marido como a menina adoeceram. Vi a certidão de óbito do marido. Essa desgraça abalou a pobre Effie a tal ponto, que ela voltou à Inglaterra, para morar com uma tia solteira em Londres. Não se mu¬dou para cá por necessidade, Sr. Holmes, o marido a deixou muito bem de dinheiro. Ela possuía um capital de 4.500 libras. Eu também não sou pobre, trabalho com cereais e ganho em torno de 800 libras anuais. Na ocasião de nosso casamento, eu e Effie resolvemos alugar uma casa no campo, em Norbury. É um lugar muito bonito, mas afastadoda cidade. Na verdade, entre nossa f.:1zendinhae a estação de trem só existe uma casa no caminho, um pequeno chalé de¬sabitado. No meu trabalho, preciso viajar durante algumas estações do ano, mas praticamente todo o verão posso ficar em casa. Minha esposa e eu fomos realmente felizes durante esses três anos. Nosso visitante fez nova pausa, como se outra dúvida surgisse em sua mente. Holmes, envolto pela fumaça de seu cachimbo, não tirava os olhos dele. -Antes de continuar, gostaria de esclarecer outro ponto. Quando nos casamos, minha esposa passou todos os seus bens para o meu nome, mesmo eu sendo contra isso. Há mais ou menos um mês e meio ela me disse: -Jack, quando você ficou com meus bens, disse que, se eu precisasse de alguma coisa, era só pedir. -Claro - eu falei -, o dinheiro é todo seu. Ela me pediu então 100 libras. Confesso que me assustei com o valor, porque imaginei que ela quisesse apenas um vestido novo ou algo assim. Cem libras é dinheiro para mais de dez vestidos! -Para quê? -perguntei. -Ora, não pensei que você me fizesse tal pergunta. Eu quero esse dinheiro, só isso. -E não me dirá para quê? -Um dia, quem sabe, mas não agora, Jack. Pois bem, senhores, não insisti mais. Confesso que era um primeiro segredo entre nós, mas dei-lhe um cheque e não pensei no assunto. Pode ser que isso nada tenha a ver com os fatos que contarei a seguir, mas... -Àsvezes,Sr.Munro, umdetalhesimplesrevelamaismistérios do que se supõe -completou Holmes. -Continue. -Eu lhe disse como nossa fazendinha era afastada da cidade e mencionei um chalé desocupado. Na verdade, ele agora não está mais vazio. Na Última segunda-feira, passei pelo chalé durante meu passeio matinal e vi sinais de ocupação na casa. Movido pela curiosidade, olhei para as janelas superiores do chalé e vium rosto. Senhores, não posso explicar a terrível sensação que me bateu, o frio que senti gelar a espinha, ao ver aquela figura. Estava um tanto distante, não podia captar direito a feição, mas, Deus me perdoe!, Aquilo não parecia humano. Não saberia dizer se era de homem ou mulher. Era uma face lisa, amarelada, quase brilhante. Fiquei tão transtornado, que re¬solvi conhecer mais sobre os inquilinos do chalé. Mal me aproximei da casa, o rosto desapareceu da janela. Bati à porta e surgiu uma mulher magra, com jeito de em¬pregada. Tinha um forte sotaque do norte da Inglaterra. -O que quer? -disse a mulher, com cara enfezada. -Sou seu vizinho. Moro ali -disse, indicando minha casa. -Vejo que a senhora se mudou faz pouco tempo... Se precisar de alguma coisa, estamos às ordens. -Está bem, chamaremos quando precisarmos -disse a mulher, batendo a porta. Claro que fiquei aborrecido com a grosseria e tentei não pensar a respeito. Mas aquele rosto terrível não saía da mi¬nha cabeça. À noite, antes de deitar, mencionei para Effie que o chalé estava ocupado. Como ela é um pouco impres¬sionável, nada contei sobre o rosto pavoroso ou o fato de ter conversado com a empregada mal-educada. O Sr. Munro fez mais uma longa pausa. Perdeu-se ainda em seus pensamentos, mas nem eu nem Holmes nada disse¬mos que o impedisse de continuar a confidência: -Tenho um sono de pedra, senhores. Minha família costumava brincar, dizendo que nem uma bomba me acor¬daria. Pois bem: não sei que estranho acaso me despertou naquela noite. Meio dormindo, meio acordado, percebi que minha esposa tinha se levantado da cama e estava se trocando. Pensei em dizer alguma coisa, mas vi a expressão de seu rosto, iluminado por uma vela. E o que vi, senhores, me abalou mais que tudo! Effie estava pálida, com uma expres¬são de criminosa, enquanto ajeitava a capa e reparava se eu ainda dormia. Ouvi quando ela saiu, desceu as escadas e destrancou a porta da frente. Confirmei o horário no relógio de cabecei¬ra: eram três horas da manhã. Que diabo minha mulher ia fazeràquela hora da madrugada? Fiquei sentado na cama, aturdido, tentando organizar meus pensamentos. Meia hora depois, ouvi os passos dela na escada. -Onde você foi, Effie? -perguntei, quando ela entrou. Ela levou um susto violento e deu uma espécie de grito abafado, e isso me desesperou ainda mais: aquele grito de¬nunciava a sua culpa. -Jack! Você, acordado! Eu pensava que nada pudesse acordá-lo. -Onde esteve?-perguntei com mais rigor. -Não me espanta que você tenha acordado -ela se desfez da capa,.mas reparei nos dedos trêmulos e na voz que tentava ser jovial.-Mas me ocorreu hoje algo que jamais aconteceu na vida... Acordei de tal maneira suada e irritada, imaginei que nunca voltaria a dormir! Precisei sair para tomar um pouco de ar.Só isso,Jack.Um passeioàluzdoluar. Durante o tempo em que narrou essa história sem pé nem cabeça, Effie não me olhou no rosto. Claro que percebi que mentia. O que ela estaria escondendo de mim? Effie meteu-se na cama e fingiu dormir. Mas creio que foi uma noite insone para ambos. Eu me revirava entre os lençóis, tentando explicar seu comportamento, tomado das mais fantásticas teorias. Na manhã seguinte nosso café da manhã foi dos mais tensosdesdequenoscasamos.Mal trocamosalgumaspalavrase eu saí. Deveria ir à cidade cuidar de negócios, mas estava tão transtornado, que fui apenas a uma vila vizinha conferir uns documentos. Por volta de uma da tarde estava na estrada de casa,passando diante do chalé recém. E que surpresa, Sr. Holmes, ao ver minha esposa saindo dali! Fiquei mudo de espanto. Mas minha emoção não era nada, se comparada ao terror que vi no rosto de Effie, quando me encontrou. Tentou voltar ao chalé, desistiu. -Oh! Jack! -disse ela. -Resolvi fazer uma visitinha a nossos vizinhos, para ver se precisavam de alguma coisa. Por que me olha assim? Está zangado comigo? -Estou -eu respondi. -É esse o lugar onde esteve ontem à noite? -O que você quer dizer? -Você veio aqui, estou certo disso. Que pessoas são essas que você visita às três horas da madrugada? -Nunca estive aqui antes. -Effie, como tem coragem de negar o que é uma clara mentira? -gritei. -Até sua voz muda, quando você mente. 'I.1mos entrar agora mesmo e resolver esse mistério. -Não, Jack!-Effie implorou, os olhos cheios de lágri¬mas. -Imploro que não faça isso, Jack. Prometo que não voltarei mais aqui. Juro que um dia lhe direi tudo. Confie em mim só desta vez, nunca terá motivos para se arrepen¬der. Se você forçar a entrada nesse chalé, estará tudo acaba¬do entre nós. Effie pegou em meu braço e aceitei acompanhá-la, mas ia arrasado, sem saber no que pensar. E ao olhar para trás, vi na janela do chalé aquele mesmo rosto medonho, brilhante, fantasmagórico. O Sr. Munro tinha uma expressão terrível no olhar, como se a visão ainda o perturbasse. Holmes ofereceu ao nosso visitante uma bebida e um charuto, mas o desamparado narrador preferiu prosseguir no seu relato, falando com mais pressa e nervosismo. -Sr. Holmes, fiquei os dois dias seguintes em casa e Effie não traiu sua promessa. No terceiro dia, porém, tive a certeza de que ela retomou ao chalé. Meus negócios me levaram à cidade naquele dia, mas voltei no trem das 2h40, em vez do trem das 3h36, como de costume. Ao entrar em casa, a criada correu para o hall, assustada. -Onde está a patroa? -perguntei. -Acho que foi dar um passeio -respondeu ela. Meu coração encheu-se de suspeitas. Subi as escadas, para confirmar se Effie estava em casa e pela janela pude ver a criada correndo pelo campo em direção ao chalé. Imaginei que minha esposa pedira para a empregada avisá-la de meu retorno. Jurei 'descobrir o segredo e saí disparado até o chalé. Nem bati à porta, entrei direto na casa. Não havia ninguém. Encontrei um gato dormindo no sofá, móveis simples pelas salas. Subi ao quarto onde tinha visto a criatura de rosto amarelo e parei diante da cômoda, sem fôlego: sobre ela, estava uma foto de Effie, que eu mandara ampliar há uns três meses. Por quanto tempo, senhores, fiquei ali naquele quarto vazio, perdido em ideias sombrias, olhando o retrato de mi¬nha esposa? Por longos minutos... E quando retomei à casa, Effie me esperava no hall. -Jack, disse ela, sei que prometi não voltar ao chalé e quebrei a promessa. Mas se você soubesse das circunstân¬cias, sem dúvida alguma me perdoaria. -Então me conte -eu falei. -Não posso, Jack!-ela gritou. -Enquanto você não me disser quem mora nesse chalé e por que a sua foto está lá, não pode existir a menor confiança entre nós -eu lhe disse, saindo de casa. Isso aconteceu ontem, Sr. Holmes, e não a vi mais, nem sei o que pode ter acontecido. Dormi numa estalagem e hoje de manhã tive a ideia de procurá-lo, para me ajudar a desvendar o mistério. É por isso que estou aqui, senhores, e me coloco em suas mãos. Holmes eeuouvimosaextraordinárianarrativadohomem, feita aos trancos, revelando sua profunda emoção. Silêncio pesadonasaladaRuaBaker.Meu amigofixavaoolharagudono rosto do Sr. Munro. Afinal, o detetive perguntou: -O senhor tem certeza de que o rosto na janela era dehomem? -Não, Sr. Holmes. Sempre o vi a distância e ele me pareceu irreal, com feição indefinida. Nova pergunta: -Há quanto tempo a sua senhora lhe pediu as 100 li¬bras? -Cerca de dois meses. -Já viu o retrato de seu primeiro marido? -Não. Houve um grande incêndio em Atlanta depois de sua morte e os papéis dele foram todos destruídos. -No entanto, o senhor viu a certidão de óbito. -Sim. -Já encontrou alguém que conhecesse sua esposa na América? -Nunca. -Ela algum dia falou que gostaria de voltar para Atlanta?Recebe cartas de lá? -Também não,Sr.Holmes. Nunca revelou saudades da terra onde morreu o marido nem recebe cartas, que eu saiba. -Pois bem -concluiu meu amigo, erguendo-se como se encerrasse o caso por aquele momento. -Preciso pensar um pouco mais: Se os inquilinos retomarem ao chalé, não force sua entrada na casa. Mande-me imediatamente um telegra¬ma, pegarei o trem para Norbury e creio que resolveremos tudo. Dizendo isso, Holmes despediu-se do desventurado Sr. Grant Munro. -O que você acha,Watson? -perguntou meu amigo, quando ficamos a sós. -Acho que tudo isso cheira mal -falei com franqueza. -Sim. Acredito que há uma chantagem nessa história. -E quem seria o chantagista? -perguntei. -Deve ser esse indivíduo que mora no chalé e tem a foto da esposa de Munro. -Tem alguma hipótese, Holmes? -Sim. Não ficaria surpreso se o primeiro marido estivesse no chalé. -Por que pensa assim? Então tive o prazer de acompanhar a atitude tão arrogante como atraente na natureza dedutiva de meu amigo Sherlock: ele vagarosamente acendeu o cachimbo e, enquanto a fumaça fazia volteios no ar, foi desfilando sua coleção de hipóteses: -Elementar, meu caro Watson: essa mulher se casou na América. Seu esposo deve ter contraído uma doença terrível, ficouleprosoou imbecil,porexemplo.Elafugiuevoltoupara a Inglaterra, mudou de nome e começou nova vida. Casada há três anos, sentia-se segura. Afinal, havia mostrado ao atual marido na certidão de óbito de algum infeliz qualquer e levava uma vida tranquila. Repentinamente, foi descoberta pelo primeiro marido, ou, podemos supor, por uma mulher imoral, queseligouaoinválidoetramou umachantagem.Escreveram à esposaameaçandodenunciá-la.Paraacalmaros ânimos,a Sra. Munro enviouas100librasaoschantagistas.Maselesacharam pouco e quiseram dar o golpe mais de perto. Quando o Sr. Munro falouàesposaqueochaléestavaocupado,elaimaginou que ali estavamseus perseguidores. Foi ao chalé de madrugada, para convencê-los a deixá-la em paz. Não teve êxito e tentou novamente no dia seguinte, sendo flagrada pelo marido. Prometeu ao Sr. Munro não re¬tomar ao local, mas dois dias depois descumpriu a promessa, levando talvez a fotografia que eles exigiam. Informada pela criada do retorno do Sr. Munro, a esposa se desfez do ex-marido e sua cúmplice por uma porta dos fundos e isso explica o t1to de o chalé estar desabitado. Mas se não me engano, nosso cliente descobrirá que não ficou assim por muito tempo. O que acha da minha hipótese? -São apenas hipóteses, Sherlock -eu respondi, não de todo convencido. -Pelo menos explica todos os fatos. Bem, vamos almoçar. Nada podemos fazer até nosso amigo nos avisar que os inquilinos voltaram ao chalé. Não esperamosmuitotempo.Àhoradochárecebemosum telegrama de Munro: "O rosto foi visto outra vez à janela.Vou esperá-losno tremdasseteenadafareiantesdechegarem". O Sr. Munro nos esperava na estação. Reparei que seu rosto estava pálido e ele parecia muito agitado. -Ainda está lá, Sr. Holmes. Vi luzes no chalé enquanto vinha buscá-los. Quero esclarecer tudo isso hoje mesmo. -Tem certeza disso, amigo? -falou Holmes, com uma expressão de tristeza no olhar. -Mesmo com o aviso de sua esposa, de que não deveria forçar uma resposta? -Sim. Estou resolvido. -O senhor está no seu direito. Qualquer verdade é me¬lhor do que a dúvida eterna. Mas temo que o senhor acabe topando com um terrível engano... Mas se é a verdade o que deseja, vamos a ela! A noite estava muito escura e começou a chover.Seguimos em silêncio pela estrada. Além, avistavam-se as luzes da pro¬priedade dos Munro. E logo a seguir vimos o chalé. Uma lanterna estava acesa à frente do sobrado. A por¬ta não estava totalmente fechada e uma janela no andar de cima estava bastante iluminada. -Lá está a criatura! -gritou o Sr. Munro, apontando para a janela. -Sigam-me, senhores, e sejam minhas teste¬munhas. Mal nos aproximamos da porta, uma mulher saiu da sombra e parou no hall de entrada. Ela estendeu os braços para a frente, num gesto de piedade. -Pelo amor de Deus, Jack, não entre! Eu pressentia que você viria aqui nesta noite. Pense melhor, querido! Confie em mim e não se arrependerá. -Já confiei muito, Effie -gritou ele. -Vamos acabar com essa farsa! Sigam-me! A empregada surgiu na sala, tentando barrar o caminho, mas foi empurrada pelo alucinado Sr. Munro. Logo, todos subíamos apressados a escada e invadimos um quarto bem arrumado. No canto, inclinado sobre uma carteira, estava um vulto que parecia de uma menina. Ela virou o rosto quando entramos, e não segurei um grito de surpresa e horror. O rosto que se voltou para nós era de uma cor lívida e estranha, os traços vazios de expressão. Um instante depois, o mistério estava explicado. Holmes, com uma risada, passou a mão atrás da orelha da criança e retirou uma máscara de seu ros¬to, apresentando-nos uma menina preta como carvão, com dentes brancos a cintilar, divertida com nosso espanto. Meu alívio diante daquilo que parecia uma brincadeira exótica me fez sorrir. Munro, porém, ficou imóvel, apertan¬do a garganta com a mão. -Meu Deus! -gritou ele. -O que significa isso? -Eu lhe direi o que significa-disse a senhora, entran¬do no quarto com uma determinação orgulhosa que não possuía à porta do chalé. -Você me forçou a dizer a verda¬de contra minha decisão. Agora precisamos fazer o melhor possível. Esta é minha filha. -Sua filha?! -exclamou o marido. -Sim. Meu marido morreu em Atlanta, mas minha filha sobreviveu. A mulher tirou do peito um medalhão e o abriu. -Você nunca o viu aberto, Jack. Aqui tem a foto de meu primeiro marido. Vimos o retrato de um homem de aparência elegante e inteligente, com inconfundíveis traços afro-americanos. -Este é John Hebron -disse ela. -Homem de sua nobreza jamais existiu sobre a Terra. Nunca me arrependi de casar com ele. Só que como acontece às vezes em tais casa-mentos, Lucy saiu mais negra que o pai. Porém, negra ou branca, é minha filhinha querida, o meu tesouro. Ao ouvir essas doces palavras,a menininha correu e se aninhou no colo da mãe. Beijando os cabelosencarapinhadosda filha, Effie continuou: -Deixei Lucy na América porque sua saúde era muito fraca e uma mudança poderia ser fatal. Ficou aos cuida¬dos de uma fiel empregada escocesa, esta que mora aqui no chalé agora. Nunca pensei em repudiar minha filha, Jack. Mas quando o destino o colocou no meu caminho e perce¬bi quanto o amava, tive medo de lhe contar sobre a minha filha. Deus me perdoe, mas tive medo de perder você e me faltou coragem para lhe contar tudo. Tive de escolher entre você e ela e, na minha fraqueza, abandonei minha filhinha. Durante três anos escondi Lucy de você, Jack. Mesmo a distância, porém, acompanhei a vida de minha filha, porque a criada me enviava cartas para uma caixa postal. Oh, Jack! As saudades de minha filha foram-se tornando insuportá¬veis. Apesar de conhecer o perigo, acreditei que poderia tra¬zer Lucy para a Inglaterra por algumas semanas. Sua saúde estava boa e ela suportaria a viagem. Por isso pedi as 100 libras, Jack, para enviá-las à governanta. Na carta, também expliquei sobre este chalé. Se elas aparecessem como vizi¬nhas, poderia encontrar minha filha sem que você descon¬fiasse. Fui tão precavida que inventei a ideia da máscara, para evitar que algum mexeriqueiro visse o rosto negro de Lucy e comentasse por aí. Mas, para minha infelicidade, foi você quem a descobriu primeiro. Effie parou um instante de falar e seus olhos encheram¬-se de lágrimas. Apertou com mais força a cabeça da filha em seu colo. -Naquela noite em que você comentou sobre o chalé ocupado, meu coração de mãe falou mais alto. Não aguentei esperar atéodiaseguinte parareverminha menina e,sabendo de seu sono profundo, arrisquei-me a visitá-la. Infelizmente, você acordou e desconfiou do meu segredo. Não tive cora¬gem de lhe dizer a verdade e, quando você invadiu o chalé, mal tive tempo de tirar Lucy e a empregada por uma saída nos fundos. E agora, nesta noite, você sabe de tudo e pergunto o que vai ser de nós, de mim e de minha filha. A mulher colocou a menina diante de todos. Ambas esperaram, sem modificar a expressão altiva, pela resposta do Sr. Munro. Passaram-se dois longos minutos antes de Grant Munro quebrar o silêncio. Ah! Mas a sua resposta foi uma daque¬las de que jamais esquecerei! O homem pegou a menininha no colo, beijou-a e, ainda carregando-a no colo, estendeu a mão à esposa, dirigindo-se para a porta. -Podemos conversar sobre isso com mais conforto em nosso lar -disse ele. -Não sou um homem muito bom, Effie, mas penso que sou melhor do que você imaginava que eu fosse. Holmes e eu os acompanhamos até a porta. Quando a família seguiu pela estrada, meu amigo me puxou pelo braço, murmurando: -Creio que somos mais úteis em Londres do que aqui em Norbury. Sherlock não disse uma única palavra sobre o caso, du¬rante a viagem de trem até a capital. Só bem tarde da noite, já na sala da Rua Baker, Holmes se atreveu a fazer uma confidência: -Watson, se alguma vez você me vir muito confiante em minhas hipóteses, ou se eu mostrar menos atenção a um caso do que ele merece, tenha a bondade de falar em meus ouvidos a palavra "Norbury". Ficarei infinitamente agradecido. Sherlock Holmes foi para seu quarto e confesso minha alegria em saber que meu amigo havia errado tão flagrante-mente em suas deduções. A realidade nos apontou um desfecho muito mais como¬vente e expressivo do que a hipótese da chantagem vulgar. O conto TheYrl/owFacefoi publicado na revista The Stratld Magazitle, em fevereiro de 1893,e no livro Thr Mellloirs oj Sherlo(kHolllles, no ano seguinte.

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