segunda-feira, 15 de abril de 2013
O ritual Musgrave - Para o 7° ano
O ritual Musgrave
UMA DAS GRANDES contradições de meu amigo Sherlock Holmes é ser um dos homens mais racionais e organizados no combate ao crime, mas completamente desleixado nos hábitos pessoais. É verdadequenãosou tãoobcecado por limpeza como meus colegas médicos, já que servi no exército nos desertos do Afeganistão e tive que me adaptar às circunstâncias, mas perto de Holmes pareço um nobre.
Nosso apartamento na Rua Baker, 221B, vive atulhado de equipamentos científicos, relíquias de crimes, recortes de jornais e coisas semelhantes. Um dos objetos que sempre me desperta a curiosidade é um arquivo enorme, repleto de fichas com antigos casos de Holmes.
Certo dia, Sherlock se pôs a rever aqueles papéis. Pegou uma ficha e leu-a durante um bom tempo. Afinal, virou-se para mim e disse:
-Watson, creio ter aqui um caso bem interessante, um dos primeiros que desvendei. Talvez você se interesse em registrá-lo, numa dessas crônicas que tão bem escreve a res¬peito de meus dons dedutivos.
-Sobre o que é, Holmes? -interessei-me.
-Eu o batizei de ritual Musgrave...
Eis aqui a história, como me foi contada pelo próprio Holmes.
Estava começando a usar meus dotes dedutivos na profissão de detetive particular, quando fui procurado por Reginald Musgrave. Estudamos juntos no colégio, mas nunca fomos íntimos. Mesmo assim, ele acompanhava meu sucesso na carreira e foi por esse motivo que me procurou.
Fazia quatro anos que não via Reginald. Lembrava dele como uma pessoa elegante, suave no falar e calmo em anali¬sar a vida e as pessoas. Por isso, estranhei que meu ex-colega de escola aparecesse em casa com um jeito apreensivo, quase nervoso.
-Como estão as coisas, Reginald? -perguntei.
-Você deve saber, Holmes, que meu pai faleceu há dois anos. Desde então herdei as propriedades de Hurlstone e tenho muito trabalho em administrá-las... -houve uma pausa ansiosa em nossa conversa. Afinal, ele completou: -Sei que você está usando profissionalmente os talentos com que nos espantava na escola.
-É verdade. Tenho resolvido alguns casos -respondi.
-Eu gostaria de contratá-lo. Em Hurlstone andam acon¬tecendo coisas estranhas e gostaria muito de contar com sua ajuda profissional.
Pedi que' meu amigo desse mais detalhes e o ouvi com atenção.
-Você sabe que, mesmo sendo solteiro, preciso manter em Hurlstone um grande quadro de empregados.Temos oito cria¬das, a cozinheira, o mordomo, dois lacaios e um menino, além do pessoal que cuida do jardim e dos estábulos.
Desses criados, quem trabalhava para nós há mais tempo era Brunton, o mordomo. Era professor e estava desempregado quando foi contratado por meu pai. Tinha muita energia e caráter e logo se mostrou indispensável na casa. Brunton era alto, bem-apessoado, e embora estivesse conos¬co há mais de 20 anos, tinha 40 e poucos anos. Sabia falar várias línguas e nos espantava que um homem com tantos talentos aceitasse o emprego de mordomo, ganhando menos do que poderia. Suponho que lhe agradasse morar no campo e visse a profissão com certo comodismo. Aliás, não havia quem nos visitasse em Hurlstone que não se lembrasse de nosso mordomo.
Mas todo modelo de virtude tem seu ponto fraco. O de Brunton eram os rabos de saia. Um bocado dom-juan, o nosso mordomo. Quando era casado, tudo ia bem. Acontece que ficou viúvo e a nossa luta com ele não tinha fim. Pensamos que as coisas se acertariam quando Brunton ficou noivo de nossa caseira, Raquel Howells. Mas ele desfez o compromisso e começou a cortejar outra moça.
Raquel, que é uma moça muito boa, mas muito suscetível, adoeceucomorompimento donoivado.Teveumafebreterrível e quasemorreu. Apobremoçasalvou-se,masacaboucomuma sequela, um olho torto. Andava pela casa feito alma penada e esse foi o primeiro drama que aconteceu em Hurlstone.
O segundo foi a demissão de Brunton.
Eu lhe disse, Holmes, que o homem era inteligente. E isso foi a causa de sua ruína. Foi essa inteligência que o levou a uma curiosidade insaciável sobre coisas que não eram da sua conta. Hurlstone é um casarão esparramado. Na semana passada, na quinta-feira à noite eu não conseguia pegar no sono. Às duas da manhã resolvi continuar o romance que estava lendo e fui buscar o livro que tinha deixado no salão de bilhar. Para chegar lá, tinha de atravessar a biblioteca e a sala de armas. Imagine minha surpresa, Holmes, quando, olhando para o fim do corredor, vi o brilho de uma luz quevinha da biblioteca.
Encontrei o mordomo sentado numa poltrona, com um papel nos joelhos semelhante a um mapa. Vi ele se levantar e pegar um dos livros, voltando a fazer anotações. Eram do¬cumentos de minha família, Holmes, e fiquei furioso.
-Então -gritei com ele -é assim que retribui a confian¬ça que sempre tivemos no senhor? Considere-se despedido.Saia amanhã mesmo.
O homem ficou pálido, Holmes, mas não perdeu a pose. Arranquei de suas mãos os papéis que consultavae me espantei em ver que era apenas uma cópia das perguntas e respostas de um velhojuramento familiar,batizado de ritual Musgrave. E uma cerimônia especial, que cada Musgrave, quando che¬ga à maioridade, tem de repetir diante dos membros da casa. Aquilo sempre me pareceu um amontoado de frases sem sen¬tido, quando muito, poderia interessar a um arqueólogo, mas nada para atrair a atenção de um simples mordomo.
-Você pode explicar esse ritual depois, Reginald -falei. -Conte mais sobre o mordomo.
-Então, Holmes, Brunton me surpreendeu com um pedido.
-Sr. Musgrave -ele falou, com a voz cheia de emoção -, cu imploro,' não posso sofrer essa desonra. Sempre fui fiel ;1sua família e não conseguiria suportar a vergonha de uma demissão. Por favor, dê-me um mês. Depois disso, posso sugerir que saí por minha própria vontade.
-O ato de bisbilhotice que você cometeu hoje não me¬rece muita consideração -eu respondi, mas, em memória de meu falecido pai, que gostava tanto de você, vou reconside¬rar. Dou-lhe uma semana para arrumar outra ocupação.
Brunton ainda tentou discutir, mas percebeu que era inú¬til e conformou-se com o prazo.
Nos dois dias seguintes, o mordomo foi impecável como sempre. No terceiro dia, porém, ele não apareceu para rece¬ber as instruções, depois do meu café da manhã, como era costume. Ao sair da sala, encontrei a criada Raquel, que es¬tava muito pálida e abatida. Ela vinha de uma grave doença e a repreendi por voltar tão cedo ao trabalho.
-Eu já estou me sentindo bem melhor, senhor -ela respondeu. -Vamos ver o que o médico vai dizer. Diga a Brunton que quero vê-lo. -O mordomo Brunton se foi, senhor -ela respondeu. -Foi? Para onde?
-Ninguém o viu. Não está no seu quarto. Oh!, sim, ele se foi... -e a pobre moça teve um acesso de riso histérico e se pôs a gritar feito uma demente.
A criada foi levada até seus aposentos e revistei o quarto de Brunton. Realmente,ele tinha desaparecido.O estranho era que elenão havialevadonada,nemmesmo osobjetos pessoais. Outro mistério: como poderia ter saído, se todas as portas e janelas da propriedade ficavam trancadas até de manhã?
Claro que reviramos a casa inteira, do porão ao sótão, mas não achamos o mordomo.
Esse desaparecimento seria um grande mistério, Holmes, se a ele não se juntasse outro: a criada Raquel também de¬sapareceu misteriosamente!
Raquel ficou de cama, doente, por dois dias. Contratei uma enfermeira para cuidar dela, mas numa noite a mulher adormeceu e, de manhã cedo, a enferma tinha desaparecido! Chamei os empregados e demos nova busca na casa inteira. Dessa vez, porém, achamos uma pista bem desagradável. Debaixo da sua janela havia pegadas que se dirigiam à lagoa. À sua margem, as pegadas desapareciam perto de um cami¬nho de pedra que segue para os campos.
Buscamos ganchos, acreditando que acabaríamos pescando o corpo da pobre suicida. Não achamos um cadáver, mas os operários resgataram um objeto dos mais inesperados. Era um saco de linho, com grande quantidade de metal antigo, enferrujado, além de pedaços de pedras e vidros, tam¬bém descorados pelo tempo.
Pois bem, Holmes, aqui termina minha história. Apesar de todas as pesquisas de meu pessoal e da boa vontade da polícia local, não há o menor traço de Richard Brunton ou de Raquel Howells. É por esse motivo, Holmes, que estou recorrendo a você, como minha última esperança de solucionar esse mistério tão grande.
Ora, Watson, imagine como fiquei ansioso em resolver esse caso! O mordomo havia desaparecido. A criada, que o amava e depois tinha motivos para odiá-lo, sumira também. Ela tinha sangue galês, furioso e apaixonado. Antes do su¬miço do homem, a criada teve uma crise nervosa. Atirou no lago um saco contendo objetos estranhos... Imediatamente comecei a juntar os pedaços da história. Tinha de haver um ponto de ligação em tudo aquilo.
-Reginald -falei para meu amigo -, preciso ver o tal papel que seu mordomo acreditava ser tão importante.
-Ora -respondeu meu ex-colega de escola -é uma tolice arqueológica. Um ritual que só interessa porque é bem antigo. Tenho aqui uma cópia das perguntas e respostas. Se quiser vê-lo...
Reginald me passou o papel que ainda guardo em meu arquivo.Leia,Watson.Cada Musgrave,ao chegar à idade adulta, tem de recitar em voz alta esse jogo de perguntas e respostas:
- De quemera?
- De quem se foi.
- De quem será?
- De quem vier.
- Onde estava o sol?
- Sobre o carvalho.
- Onde estava a sombra?
- Debaixo do olmo.
- Como chegar?
- Norte, dez e dez; leste, cinco e cinco; sul, dois e dois; oeste, um e um, então embaixo.
- O que daremos por ela?
- Tudo o que é nosso.
- Por quê?
- Pela confiança.
O original devia ser de meados do século dezessete, foi oque me disse Reginald. Mas ele não acreditou que o ritual meajudasse a resolvero caso do desaparecimento dos criados.
Não foi o que eu pensei, Watson. E disse isso a ele:
- Desculpe-me, Reginald, mas acho que o mordomo eramais inteligente e lúcido do que dez gerações de seus patrões.
- Como assim? - espantou-se ele.
- Diga-me... na noite em que você flagrou o mordomona biblioteca, disse que o homem estava com algo semelhantea um mapa?
- Foi o que me pareceu.
- E ele conhecia o ritual?
- Claro. Ninguém iria esconder uma bobagem dessas.
- Caro amigo, para encontrarmos a resposta, teremos defazer uma pequena viagem.
Na mesma tarde, eu e Reginald chegamos a Hurlstone.Uma propriedade magnífica, Watson! Uma construção emforma de L: a parte mais comprida, a mais nova, e a maiscurta, a mais antiga.
Debaixo da pesada porta de madeira está entalhada umadata - 1607 -, mas as obras de madeira e pedra são narealidade bem mais antigas. As paredes são extremamentegrossas, e as janelas, muito altas. A parte antiga servia comoadega e armazém, apenas a parte nova era usada como moradia.Em volta da casa, jardins esplêndidos e um lago.
Watson, eu tinha certeza de que não havia nessa históriatrês mistérios separados, mas apenas um, que envolvia o talritual Musgrave. Se soubesse decifrá-lo, mataria a charada.
Dei uma boa olhada pelos terrenos e vi um carvalho, umadas árvores mais frondosas que eu já tinha visto.
-Reginald, essa árvore estava aqui quando o ritual foi escrito? -eu perguntei. -Acredito que sim. Os carvalhos vivem mais de 200 anos.
Havia encontrado um dos pontos de referênciado ritual!
-Diga-me, Reginald, existe aqui algum olmo?
-Havia um, que foi queimado por um raio, há uns dez anos, e precisou ser cortado. -Lembra onde ele ficava? -Claro!
Andamos até o lugar. Reparei que o olmo ficava exata¬mente entre o carvalho e a casa.
-Tem ideia da altura do olmo, Reginald?
-Sessenta e quatro pés'. Tenho certeza disso porque meu professor de matemática costumava me passar exercícios com comprimentos, larguras e alturas de construções e árvores da nossa propriedade... Mas o que isso tem a ver com o desaparecimento de Brunton e de Raquel?
Apenas sorri, Watson. Era um bom golpe de sorte. Perguntei: -Seu mordomo alguma vez perguntou sobre a altura do olmo?
Espantado, Reginald confirmou que sim, há alguns meses.
Olhei para o sol. Estava baixo no céu, calculei que em menos de uma hora bateria exatamente em cima dos mais altos galhos do carvalho. O extremo mais longo da som¬bra devia apontar o local escolhido como baliza. Teria de calcular o ponto final da sombra, onde o olmo estivera antigamente.
Era um bom desafio, mas se Brunton conseguiu resolvê-lo,achei que também conseguiria. Fui a um depósito e pro¬curei uma estaca. Amarrei nela uma longa corda, de seis pés de comprimento. Fiz alguns cálculos um tanto complicados para explicar agora, mas, ao esticar a corda, seguindo a li¬nha que nos levaria à sombra do olmo, animei-me! A ponta da corda batia praticamente em cima de uma depressão no terreno. Deveria ser uma marca feita por Brunton em suas medições. Eu seguia sua pista!
Comecei a andar, seguindo os pontos marcados na bússola. Dei dez passos para o norte e caí rente ao muro da casa. Marquei o lugar com outra estaca. Dei cinco passos para leste, dois para o sul. Estava diante da porta antiga. Dois passos para o oeste mostraram que deveria descer um caminho de pedras: esse era o local marcado pelo ritual.
Ah, que desapontamento, Watson!Era um piso, com granitos tão unidos e sólidos como se não fossem movidos há décadas, talvez séculos! Brunton não poderia ter cavado ali. Mas Reginald, que acompanhava minhas investigações tão excitado como eu, lembrou de outra indicação do ritual:
-É embaixo! -gritou ele. -Você se esqueceu do "e então embaixo".
-Imaginei que teríamos de cavar, mas é impossível cavar estas pedras... -eu falei.
-Mais abaixo ainda, Holmes! Estas pedras são o teto do porão, tão antigo quanto a casa.Venha comigo, por essa porta.
Descemos por uma escada em espiral. Meu amigo riscou um fósforo e acendeu uma tocha, que estava afixada na pa¬rede. Pelas marcas de pés nos degraus, percebemos que não éramos os únicos a visitar o local recentemente.
Em outros tempos, o lugar servira de depósito de lenha. A madeira porém estava afastada para a parede, revelando um círculo redondo, uma laje no chão, com uma alça de fer¬ro enferrujada no centro, onde estava amarrado um pano.
-É o cachecol de Brunton! -gritou Reginald. -O que faz aqui?
Como resposta, toquei na alça de ferro. A laje era pesada demais. Por minha sugestão, Reginald chamou dois guardas da aldeia. Esperamos ansiosos por sua chegada.
Quando os dois policiais chegaram, eu e eles levantamos a pedra e encontramos um pequeno porão, fedendo a po¬dridão e mofo.
De um lado, havia uma caixa de madeira podre, o que deveria ter sido um baú, com moedas de metal dentro. E do outro... Ah!, Watson, o que vimos no outro canto da câmara. Era um homem vestido de preto, ajoelhado, com o rosto mergulhado sobre o tesouro e abraçando a caixa apodrecida. O policial moveu o corpo, e vimos um rosto disforme, da cor do fígado. Era o mordomo desapareci¬do. Estava morto há alguns dias, mas o exame não reve¬lou nenhum ferimento, como uma facada ou tiro. De que morrera o homem? Como viera parar ali? E a criada, o que tinha com o caso? Confesso que me decepcionei, Watson. Achava que loca¬lizando o lugar do ritual solucionaria o mistério. É verdade que havia localizado Brunton, mas não o motivo que o le¬vou a um fim tão trágico. Pensei, pensei muito... Você conhece meus métodos nes¬ses casos, Watson. Coloquei-me no lugar do mordomo. Era um homem inteligente, mais do que seus patrões, já que descobrira há tempos que o ritual era uma espécie de mapa do tesouro. Seguindo a sombra das árvores e fazendo cálcu¬los, topou com o porão e, ao remover a lenha, achara a pedra que escondia alguma riqueza. Era uma pedra pesada demais para um só homem erguê-la, o que poderia fazer? Ele não poderia arrumar um cúmplice de fora, alguém da cidade, mesmo se encontrasse alguém em quem confiar, pois corriao risco de ser descoberto.
É provável que Brunton estivesse remoendo essas dúvidas há muito tempo, mas, como Reginald o havia despedido, ele teria apenas uma semana para sair, e teve de tomar uma rápida decisão. E quem melhor para ajudá-lo do que alguém da casa?
Ora, Brunton sabia que Raquel era apaixonada por ele. Tinha poucos dias para localizar o tesouro, então deve tê¬-Ia seduzido com promessas... a moça aceitou o desafio e acompanhou o mordomo por aquelas catacumbas.
Veja, Watson: um homem de 40 e poucos anos e uma jovem, diante de uma pedra pesadíssima. Eu e dois solda¬dos tivemos dificuldades em levantá-la. Repare no que falei, Watson: levantá-la...mas não seria difícil usar um ponto de apoio e empurrá-la para o lado, o suficiente para que desse passagem a um homem.
Comecei a investigara lenha abandonada na adega,Watson, e logo topei com uma tora dentada numa ponta e tão achatada de um lado, como se um peso terrível a tivesse comprimido. Evidentemente, colocaram a tora na fenda, depois de terem deslocado a pedra. Rolaram a tora pela abertura, o suficiente para que Brunton pudesse entrar no porão.
E agora, Watson, como reconstruir o drama daquela ma¬drugada? Um buraco tão estreito, era evidente que apenas Brunton caberia nele. O mordomo achou um saco de moedas, passou-o para cima. A moça, sua cúmplice,ficou à margem da tumba... que sentimentos passaram por sua cabeça? Qual seria o fogo ardente da vingança, que explodiu na alma daquela mulher apaixonada, abandonada pelo amante? Que instante de lucidez diabólica não deve ter-se apos¬sado da mulher, vendo o homem que havia destruído seus sonhos, assim à sua mercê, embaixo da pedra? Seria ela apenas culpada por silenciar sobre um acidente, na hora em que a pedra escapou... ou foi a sua mão que a empurrou, lacrando o túmulo sobre o homem que tanto mal lhe fizera?
Fosse o que fosse, Watson, quase posso ver aquela figura de mulher agarrando-se ao tesouro, voando pelas escadas e ouvindo ecoar os gritos apavorados do homem sepultado pela pedra...
Acredito que foi esse o mistério de seu rosto pálido, seus nervos arrebentados, no dia seguinte ao desaparecimento do mordomo. O que ela fez com a caixa? O que ela conteria? Creio que era o metal velho que os empregados pescaram da lagoa, depois que a criada desapareceu do quarto. Ela jogou tudo aquilo na água, sepultando o último rastro do seu crime.
Eu estava perdido em meus devaneios, naquela tarde, quando Musgrave se aproximou. -São moedas do tempo de Carlos F -disse ele, seguran¬do algumas que tinham restado na caixa.
-Reginald, podemos encontrar algo mais de Carlos II -gritei, lembrando-me do significado das duas primeiras perguntas do ritual. -Deixe-me ver o conteúdo do saco pescado na lagoa.
Fomos à biblioteca de Hurlstone e meu amigo espalhou
o conteúdo do saco sobre uma grande mesa de carvalho. Havia várias moedas, algumas gastas e enferrujadas, com o símbolo do rei em uma das f:1ces.O que mais me surpreen¬deu, contudo, foi um pequeno metal retorcido, preto, com pedras embaçadas presas nele. Peguei um pedaço de pano e comecei a dar brilho àquilo.
Logo, tínhamos uma centelha dourada reluzindo em
meio ao metal enegrecido! Musgrave não conteve um grito de espanto. -Holmes, mas o que é isso? -Isso, caro Reginald, se muito não me engano, é uma das mais gloriosas relíquias da história da Inglaterra. -O que é, Holmes? Não me deixe assim em suspense. -Nada menos que a antiga coroa inglesa.
-A coroa!
-Precisamente -respondi. -Lembre-se do que dizia o ritual: "De quem era?" "De quem se foi". Foi depois da execução de Carlos I "De quem será?" Seria de Carlos lI, que tomou posse como rei. Creia, meu amigo, esse ferro retorcido já enfeitou a fronte da casa real dos Stuarts.
-Mas como isso foi parar na minha lagoa, Holmes? É verdade que meus ancestrais eram leais ao rei Carlos, mas...
-Infelizmente, Reginald, nem mesmo todo meu arse¬nal de deduções poderia explicar a tragédia da família real inglesa daquela época. Não faço ideia de como a coroa foi
parar nas mãos de um antepassado seu.
-Carlos II nunca usou essa coroa, que se saiba -ele disse.
-Provavelmente seu ante passado faleceu antes de entregá-la ao novo monarca -concluí. -Mas deu a pista para seus sucessores, na forma de um enigma, o tal ritual Musgrave, e pordezgeraçõesafamíliarepetiuoritual,sementender seu significado. Até que o mistério foi desvendado por um homem brilhante, que pagou essa descoberta com a vida.
Sherlock Holmes terminou sua narrativa. Peguei a folha que continha a cópia do ritual, de maneira respeitosa. -E a mulher, Holmes? -Nunca mais foi vista, Watson. Creio que fugiu do país. Se for julgada um dia, o será por sua consciência e por
Deus. Quanto à coroa dos Stuarts... está em Hurlstone. Os Musgrave tiveram de pagar uma série de taxas e deixar que especialistas a analisassem, mas conseguiram manter a preciosidade na família.
-Gostaria de vê-Ia -disse, suspirando.
-Ah!, isso é fácil. Posso redigir uma carta para Reginald. Tenho certeza de que se você se apresentar como meu amigo, os Musgrave terão prazer em lhe mostrar a relíquia -disse Sherlock, antes de suspirar fundo.
Foi com o olhar perdido no ar que meu amigo concluiu sua história:
-Moedas de ouro e uma coroa. Foi um bom resultado para o caso,não acha,Watson? Para colocar um ponto final no enigmado ritualMusgrave,segredoquevinhadedez gerações.
o conto Thr MusgravrRitual foi publicado na rcvista TtJr Slralld Magazi/lf, cm maio dc 1893, e no livro Thr Mrl1loirsof ShrrlorkHoll1lrs.no ano seguinte.
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